quinta-feira, 4 de novembro de 2010

CETICISMO CONTEMPORÂNEO

Há uma diferença fundamental entre o ceticismo contemporâneo e aquele outro ceticismo nascido e desenvolvido com a modernidade. Tributária do racionalismo grego clássico, a postura cética consolidada com as revoluções burguesas pôs em suspeição e descrédito somente as matrizes explicativas dominantes da época, ou seja, a fé e a religião. Tomadas como obscuras formas de conhecimento, elas foram vistas apenas como produtoras de crendices e superstições, as quais careciam de análises comprobatórias e conduziam ilusões e erros. Para os céticos racionalistas, somente o saber racional – único confiável – poderia atingir a verdade e, através da manipulação e controle da realidade, levar o homem ao caminho do bem ou, nas palavras da época, ao progresso. Tratava-se de um movimento que, supondo a exclusão entre fé e racionalidade, matou de maneira impiedosa o fantasioso Deus para pôr em seu trono a iluminadora, soberana e, agora, legitima doadora de sentido pra vida humana, razão. Tal ceticismo foi ficcionalizado por Ivan Turgueniev, em seu romance Pais e Filhos, no personagem Bazarov – homem utilitarista, devotado à ciência, particularmente à biologia, desprezador das vãs convenções aristocráticas e das tolas crenças do povo, além de negador do valor da arte e do amor, mesmo tendo sucumbido ao seu poder. Mais radical e extremo, o ceticismo do que se convencionou chamar de pós-modernidade, por sua vez, não limita a suspensão do seu juízo à fé e à religião. Sua descrença, muito mais ampla que a dos homens das Luzes, atinge também a até então divinizada razão. Aos olhos dos céticos contemporâneos, o conhecimento racional se revelou falível em sua ambição de verdade, uma vez que ele é parcial, concebido a partir de uma perspectiva limitada, e, ao mesmo tempo, se mostrou incapaz de gerar o idealizado progresso, trazendo, ao contrário, uma série de desastres – monstros que a razão, mesmo desperta, e não apenas adormecida como no quadro de Goya, foi capaz de conceber (duas guerras mundiais, holocausto, totalitarismos, bombas atômicas, degradação ambiental, etc.). Em uma era de verdades destroçadas e utopias mortas emerge, assim, uma espécie de ceticismo iconoclasta, irracionalista, obscurantista, um niilismo absoluto que dilui a diferença entre fé e racionalidade afirmando sua equivalência, uma incredulidade tal que, mal terminado o sepultamento de Deus, tratou de assassinar aquela que foi posta em seu lugar. O filósofo romeno Emil Cioran talvez seja maior expressão dessa nova postura. Chamado de a hiena pessimista, esse pensador desenganado, para quem “a lucidez completa é o nada”, desmistificou tanto a fé como a razão, vendo ambas como delírios desprovido de objetividade, produzidos pela sede Absoluto inerente ao homem. Entre o oitocentista Bazarov e o contemporâneo Cioran, entre o ceticismo moderno e o atual, há, portanto, uma distância irredutível: enquanto para os primeiros havia um porto seguro onde ancorar a existência, para os outros, a vida repousa sobre nada. Pois se os modernos encontraram uma substituta para a fé, os pós-modernos ainda não encontraram para a razão. O trono da dinastia dos Absolutos encontra-se vago.

* A gravura acima – O sono da razão produz monstros – é do espanhol Francisco de Goya.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A BONDADE DE DORIAN GRAY

Depois de ter perpetrado inúmeras perversidades em busca de novos prazeres e sensações, e depois de ser aturdido pelos tormentos do remorso e da culpa ao ver que, por um poder mágico, a cada ato que cometia, seu retrato estampava traços reveladores de sua maldade (“um laivo de crueldade na boca”, mancha vermelha na mão, etc.), Dorian Gray decide, já ao fim do romance, adotar uma nova posição face à vida: opta por abandonar os “atos terríveis” que praticara, bem como a amoralidade e o cinismo que os justificavam, para dedicar-se ao bem, às “boas ações”, à atividade filantrópica. É então que seu retrato, o qual funciona na trama como um espelho lúcido de sua consciência, lhe faz uma nova e mais aterradora revelação. Quando pratica o que considera sua primeira boa ação, Dorian Gray vai até o quarto sujo e abandonado onde escondera a pintura para olhá-la, na esperança de que novos sinais mais agradáveis aparecessem no desenho de seu belo rosto, ou, pelo menos, que desaparecessem os malditos “traços do mal”. Porém, para sua surpresa e desespero, “não havia nenhuma modificação, a não ser nos olhos, que tinham uma expressão de astúcia, e na boca, que se apresentava repuxada por uma ruga de hipocrisia”. Sim, o retrato/consciência lançava-lhe na cara, literalmente, que seu ato bom, assim com sua recente resolução de praticar o bem, não passava da mais pura vaidade e hipocrisia. A bondade aparece a Dorian Gray como um ludíbrio de si mesmo e dos outros, onde, sob o pretexto de ajudar o próximo, procura-se somente conquistar e se pavonear com a fama de benfeitor, além de apaziguar uma consciência culpada. Portanto, é ainda o inescapável egoísmo que continua movendo-o, e o outro continua sendo, a seus olhos, um meio e não um fim. Sem poder suportar o peso dessas revelações, sem poder aceitar os remorsos de uma atitude cínica ou a hipocrisia da filantropia, Dorian Gray tenta destruir seu retrato, o que equivale, para ele, a destruir a própria consciência. Mas, em um desfecho enigmático, é ele quem morre, enquanto o retrato permanece intacto, agora, sem os sinais do mal.