segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O VÍCIO DE CRER

Não é tanto a mentira que se considera um vício moral; não é tanto ela que tudo fazemos pra evitar. Mais do que mentir, o ato que realmente repudiamos e receamos é crer. É a credulidade, e não tanto a mentira, que temos na conta de moralmente condenável. Quando tomamos conhecimento de algum engano sofrido por alguém, não é sobre o enganador, o criador do embuste, que recaem nossas censuras; não é sobre ele que lançamos nossas invectivas; não é ele o vilão a ser execrado. Ao contrário, é para o enganado, para a vítima do logro, que direcionamos nosso olhar condenador. É ele que, ao acreditar, ao se deixar enredar nas teias da trapaça, incorreu em erro; é ele que procedeu de maneira má; ao passo que o enganador, traiçoeiro e velhaco, este, por sua vez, apenas fez o que se considera normal que se faça, apenas fez aquilo que tem de necessariamente ser feito, de modo que está imune, a salvo de toda crítica moral. Em tempos em que, como já foi dito, os homens são lobos uns dos outros, não é a tendência para enganar, mas a disposição em acreditar no outro – que pejorativamente denominamos de ingenuidade – que é uma perversão ética (O protagonista de O Idiota de Dostoiévski não recebeu tal alcunha e não era espezinhado por outro motivo). O dolo, o ardil, em contrapartida, aparece sob a respeitável e moralmente louvável veste da astúcia, da esperteza. Em poucas palavras, e levando a idéia ao extremo, nossa ética postula que mau é aquele que crê e não aquele que mente. Basta, para comprovar, notar o orgulho daquele que enganou em contraste com a vergonha daquele que foi enganado. Longe estão os tempos em que a palavra dada tinha o peso de um juramento inquebrantável e que a lealdade era um valor tão rígido ao qual quem descumprisse caia em desonra, recebendo a marca de covarde e traidor. Hoje o que é dito pode ser desmentido, o que é prometido pode ser descumprido e o que o jurado pode ser perjurado, tudo sem maiores dificuldades e sem grande prejuízo moral para quem o faz. Em nosso mundo a mentira ganhou legitimidade, foi autorizada, e não nos é recomendado outra coisa a não ser desacreditar... Descrer tornou-se um imperativo moral.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

PERDIÇÃO

Duvidar é transpor o limiar do caos e do desespero. Um homem desprovido de certezas, hamletiano por condição, não vê regularidade e ordem na Vida; e nessa desarmonia geral que é o Universo, ele só pode experimentar um sentimento de paralisia. Irremediavelmente perdido em miríades de interrogações, seus pensamentos formam como que um labirinto, e os caminhos de sua vida, uma interminável encruzilhada por onde não sabe se guiar; seu andar é vacilante, e sua fala, timbrada pela hesitação. Nos antípodas do homem convicto, que vê harmonia em tudo e cujas certezas trazem reconforto pela familiaridade com que o coloca com relação às coisas, o homem que duvida é, onde quer que esteja, um estrangeiro que deslegitima os códigos da existência. Errante por toda parte, portador de uma constante e profunda angústia, sem uma bússola capaz de orientá-lo, ele sofre por ter caído do paraíso das verdades, e está condenado à agonia da descrença por ter se servido da dúvida, o verdadeiro pomo proibido.