quinta-feira, 15 de maio de 2008

O ETERNO RETORNO: UMA OUTRA MANEIRA DE ENCARAR A VIDA

Tempos atrás ouvi falar de um livro intitulado Acreditavam os gregos em seus mitos? Grosso modo, o autor, Paul Veyne, assegura que a palavra acreditar não possuía na antiguidade o mesmo significado que possui para nós modernos. Assim, acreditar nos mitos, que são uma forma de explicar o mundo, não queria dizer tomar como verdadeiras aquelas história fabulosas. Acreditar nos contos de Pandora, Prometeu, Sísifo, etc., significava, na verdade, crer nas mensagens que postulavam. Ora, a doutrina (ou mito) do eterno retorno criada por Nietzsche, que para mim pareceu, à primeira vista, tão absurda quanto a mitologia dos gregos antigos, talvez possa ser lida nesses mesmos termos.
Pelo que imagino, para o filósofo alemão, tal doutrina diz que essa vida, tal como a vivemos agora, se repetirá por toda eternidade. Isto é, nós nascemos, crescemos, tomamos nossas decisões, fazemos nossas escolhas, morremos, e após nossa morte, nascemos novamente, e fazemos tudo exatamente da mesma maneira como fizemos em nossa vida anterior. E esse movimento se repetirá eternamente: “a eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez”. Mas não se trata, como poderia parecer, de revivermos a mesma vida, tendo a possibilidade de tomarmos decisões e fazermos escolhas diferentes das passadas, de uma forma que corrija nossos erros de outrora e aperfeiçoe aos poucos nossa existência. Ao contrário, a idéia do eterno retorno dá a entender, para desespero de muitos, que a vida que estamos conduzindo nesse momento se repetirá absolutamente do mesmo modo como está acontecendo, com todos nossos erros e acertos, com toda nossa grandeza e miséria, não havendo nela nada de novo. É como se estivéssemos vivendo e construindo nossa primeira vida, e como se as outras que irão sucedê-la para todo o sempre fossem meros replays dela. Temos liberdade para fazermos da vida que levamos hoje o que mais nos apetecer; podemos escolher o caminho que mais nos agradar. Porém, nas infinitas vidas vindouras, não teremos mais tal liberdade e poder de escolha. Seremos obrigados a fazer tudo o que fazemos hoje; estaremos condenados a repetir tudo o que vivenciamos do ventre à sepultura. Da perspectiva do eterno retorno, portanto, viver nada mais é que construir o próprio destino, mas um destino que sempre volta.
Tal idéia pode, evidentemente, provocar grande estranhamento e suscitar as mais diversas interpretações e especulações acerca de suas reais possibilidades. Contudo, a meu ver, a chave para compreendê-la não está em questionar a veracidade de seus fundamentos, isto é, questionar se realmente iremos viver a mesma vida ad infnitum. Ainda que esteja respaldada em uma cosmologia, a doutrina do eterno retorno pode nos interessar apenas do ponto de vista das implicações e conseqüências que traz ao nosso agir cotidiano. Assim como os gregos antigos faziam com seus mitos, podemos crer no eterno retorno somente na medida em que ele nos traz uma mensagem. E, de fato, encarar a existência como um ciclo sem fim é algo que causa vertigens, e que pode operar uma profunda transformação em nosso comportamento e na maneira como concebemos a vida.
A despeito de toda religiosidade apregoada, é regra em nossos dias, crermos que nossas vidas são finitas; que após nossa morte nos transformamos apenas em poeira ou alimentos para os vermes. Tal crença na finitude e na fugacidade da existência humana, só poderia a tornar completamente desprovida de sentido e levar a uma grande despreocupação com nossas ações. Se temos em mente que nossa vida é um acontecimento único, que ela nunca se repetirá, aquilo que fazemos ou deixamos de fazer aqui perde muito de sua importância. Como pensamos que a morte sela o fim de tudo, nossas escolhas, decisões e atos não têm muito peso: toleramos as coisas mais desagradáveis e detestáveis, do mesmo modo que deixamos de fazer as coisas que mais nos agradariam. Tudo sem muita ponderação, afinal de contas só acontecerá uma vez. Aqueles que vêem o mundo por esse prisma dizem “vai passar”, ou ainda, “já passou”. E essa visão linear da vida os faz suportar tudo, tornando seu agir bastante displicente. Como observou Milan Kundera em seu A insustentável leveza do ser, "em um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do eterno retorno (...) tudo se encontra previamente perdoado”.
Contudo, se abandonarmos essa concepção e enxergarmos a vida como um eterno repetir-se teremos, inevitavelmente, uma postura radicalmente distinta. Acreditar que tudo que fizermos aqui e agora sempre retornará da mesma maneira, conduz a uma extrema revalorização e reavaliação dos nossos atos e de nossas vidas. Ao vislumbrarmos o ciclo interminável da existência, somos fatalmente colocados, antes de qualquer ato, desde o mais ínfimo até o mais grandioso, diante das perguntas: será que eu quero fazer isso por toda eternidade? Será que tal escolha merece ser feita infinitas vezes? Tais indagações pesam como o mais pesado dos pesos sobre o nosso agir. O eterno retorno confere a cada gesto uma responsabilidade assustadora. Pois nossas ações deixam de ser coisas fugazes que acontecem uma só vez para transformarem-se em coisas eternamente repetíveis. Assim, cometermos erros e fazermos coisas desagradáveis e detestáveis hoje significa cometermos esses mesmos erros e fazermos essas mesmas coisas para sempre. Se tudo volta, sofremos as conseqüências de nossos atos eternamente. Por isso, os erros e os males perecem muito mais insuportáveis e imperdoáveis. Enquanto os crêem na finitude da vida dizem “vai passar”, os que abraçam o eterno retorno pensam “vai voltar”. E esse olhar cíclico os obriga construir uma vida prazerosa e satisfatória o suficiente para quererem vivê-la novamente.
O eterno retorno de Nietzsche, então, parece ser um convite para se viver melhor. Convite que, longe de negar os sofrimentos e as misérias da vida, apenas sugere uma maneira diferente de encará-los.